Carmem Guarita da Silva era pianista. Seu prazer era ver os ágeis dedos passeando pelo teclado. Jovem, estudava com afinco, familiarizando-se cada vez mais com as partituras das músicas que tocava. Seu grande sonho era o de ser concertista, tornar-se conhecida entre os grandes nomes da música: ser uma grande pianista.
Tudo parecia correr bem, quando o inesperado aconteceu. A jovem pianista foi acometida de hanseníase. A terrível enfermidade mutilou e deformou o corpo da jovem tão bela, cheia de vida e esperanças; suas mãos foram atingidas e seus ágeis dedos ficaram completamente entrevados.
Ferida em seu mais elevado ideal, a jovem viu o sonho de ser pianista transformar-se em terrível pesadelo. Arrancada dos amigos e familiares, foi levada ao leprosário. Foi no dia 20 de janeiro de 1945 que chegou à colônia dos hansenianos em Marítuba, no Pará.
Havia ali um jovem, José Júlio da Silva Júnior, pastor evangélico, também sofrendo da mesma enfermidade. Apesar dos problemas de saúde, ele prestava assistência pastoral aos colegas enfermos. Foi através do testemunho dele que ela conheceu Jesus e o recebeu como Senhor de sua vida.
Algum tempo depois, José Júlio e a jovem se casaram, e aquela que havia sido tirada dos seus e da comunidade dos sãos, tornou-se uma bênção ao lado do marido, ajudando-o nas lides pastorais. Em agosto de 1972, o pastor José Júlio faleceu, e a esposa, apesar de toda limitação, continuou ajudando as pessoas na comunidade.
Foi em 1974 que conheci a viúva do pastor José Júlio. Eu era um jovem pastor, com 28 anos de idade e três anos de experiência no pastorado. Eu havia assumido o pastorado da Primeira Igreja Batista do Pará, em Belém, quando me falaram de dona Carmem, que era membro da igreja e vivia na Colônia dos Hansenianos, em Marítuba, e que eu devia visitá-la. Informado de sua história, e nunca antes me defrontado com caso semelhante, fiquei bastante preocupado de que maneira levar conforto a alguém tão sofrida.
Para aquela primeira visita, escolhi vários textos bíblicos que julguei apropriados, mas estava muito tenso, sem saber como iniciar a conversa. Entretanto, grande foi a minha surpresa naquele dia. Realmente eu não precisava preparar-me para conversar com a irmã Carmem, pois ela estava preparada e sabia deixar todos quantos a visitavam completamente à vontade. Foi em sua humilde casa, na Colônia em Marituba, que a encontrei. Ela estava, como de costume, sentada em uma cadeira. A terrível doença se alastrara tão terrivelmente em seu corpo, que ela não podia ver nem andar.
Naquele dia, ela me contou com toda naturalidade sobre sua vida e suas duras experiências. Sem qualquer nota de indignação ou resquício de tristeza e amargura, ela falava de tal modo que a todos admirava e inspirava. Conversando com ela, podíamos sentir o poder de Deus naquela vida. Só mesmo o toque da fé podia transformar alguém tão sofrido em uma personalidade tão cativante, tão serena, tão linda e tão inspiradora. Sofrera tanto e vira seus lindos sonhos transformados em terríveis pesadelos; outros, no lugar dela, certamente se tornariam pessimistas e perderiam a capacidade de olhar para a frente.
Dona Carmem, porém, não perdeu a esperança Perdeu a vista, mas não perdeu a visão; perdeu a capacidade de andar, mas não perdeu o equilíbrio; perdeu a mobilidade dos dedos, mas não perdeu a fé. Ela olhava o futuro com firmeza, esperança e certeza. Várias vezes ela me falou de sua realidade presente e seus planos futuros.
Dizia estar privada das três coisas que mais a realizavam na vida: gostava de andar, mas não podia – suas pernas estavam imóveis; gostava de ler, mas não era possível – não podia enxergar; e gostava de tocar piano – entretanto, não podia, seus dedos estavam entrevados. Para ela, todavia, isso era apenas uma realidade transitória. Havia a certeza de um futuro glorioso, eterno, com Jesus.
Ela dizia estar aqui de passagem e que, quando chegasse ao céu, poderia outra vez, e para sempre, fazer todas as coisas boas de que tanto gostava, das quais, temporariamente, havia sido privada. Com alegria e entusiasmo ela falava de sua partida. “Quando eu chegar no céu, terei um corpo perfeito e poderei, outra vez, tocar piano”
Durante quase oito anos tive o privilégio de ser seu pastor. Ela não era uma simples ovelha. Tinha um cuidado especial por seu pastor e por ele orava todos os dias. Visitá-la tornou-se uma inspiração. Indo à sua casa, fui abençoado diante de uma fé tão simples e profunda. Em meio a tanto sofrimento e dor, nunca a vi triste ou desesperada e jamais ouvi de seus lábios qualquer reclamação, queixa ou lamento.
Sempre que um dos coros da igreja preparava uma cantata, era ponto de honra uma apresentação especial na casa da irmã Carmem No Natal, apresentávamos hinos; era um recital especial para ela. Com toda atenção e sensibilidade artística, ela comentava as músicas que ouvia. Em sua humildade, agradecia aos coristas e dizia não ser merecedora da atenção daqueles que iam ao seu encontro.
No Natal de 1982, tivemos uma apresentação a menos e isso foi doloroso para os coristas. Nos festejos natalinos ficou o vazio daquela apresentação domiciliar que não mais era necessária. Na manhã do sábado,10 de julho de 1982, a irmã Carmem havia sido transferida deste vale de lágrimas para o país onde não há pranto, nem choro, nem dor -passou do vale da sombra da morte para a vida eterna. Agora, na presença do Mestre a quem tanto amou e honrou, ela ouve as mais belas sinfonias e desfruta das belezas celestes e prazeres que ainda não podemos compreender na sua totalidade. Ela está com Deus, seu pranto foi enxuto – não há mais choro, gemido ou dor.
Com seu corpo incorruptível, ela pode não somente ler, mas contemplar as belezas do paraíso; pode não apenas andar, mas andar com Jesus; e pode não somente tocar piano, mas tocar no coro celestial.
Por uma vida tão simples e tão profunda; por tanta alegria num cenário de tristeza, pela esperança, onde só haveria desespero, louvamos ao Cristo que tem poder de transformar o pranto em canção e que nos dá a certeza de que outra vez o piano tocará.
História verídica Texto extraído do livro “Homilética – da pesquisa ao púlpito” de autoria do meu professor de teologia Jilton Moraes, quando este foi pastor no estado do Pará. Pr Jilton foi recolhido para a eternidade em dezembro de 2024, mas deixou um grande legado para a igreja brasileira com excelentes obras na área de pregação e homilética.
Adesa – Um Projeto de Vida.